terça-feira, 20 de março de 2012

A CEGUEIRA DO SAPO


No início dos anos 1970 um dos points da fina flor do humor puramente kampuzartista era o quarteirão da Rua Getúlio Portela entre a Tiradentes e a Maria Rita Franco. Na dita quadra localizavam-se o bar do Guinho, a pensão do Jaime e da D. Neusa, que mais tarde pertenceria ao Sr. Juca Basílio, e a Farmácia São Vicente, da D. Mariinha.

Na pensão, uma mesa de truco era montada todo final de tarde. Assim que a farmácia fechava as portas, Carlinho Ventania, Marcinho Pontes, Zuraipe, Adilson Floriano e mais alguns que por ali fingiam trabalhar se dividiam entre o sinucão do Guinho e o carteado.

Certa feita, a rodada de truco avançou pela noite e um viajante de Bambuí acompanhou queda a queda desde o início. Por volta das 10 da noite, com a sala mal-mal iluminada pela luzinha capenga da Companhia de Força e Luz, o sapo adormeceu.

Carlinho Ventania não perdia nada: um olho nas cartas e outro procurando um malfeito. Quando viu o viajante dormindo, cutucou o parceiro e fez sinal para este apagar a luz. E, como se nada tivesse acontecido, passaram a fazer de conta que ainda jogavam.

- Passa o rei...

- A primeira vai à missa...

- Não tem perdão: TRUUUUUUUCOOOOOOO!!!!!!!!!!! LADRÃO!!!!!!!!!

- É SEEEEEIIIIIS!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

O rapaz acordou assustado com a gritaria, olhou para os lados sem enxergar nada e viu que na mesa o jogo continuava.

- Puxa os tentos, Ventania.

- Jogo nosso. Jogo no jogo.

Com cara de pânico, esfregando os olhos e quase em prantos, o bambuiense gritou assustado:

- Gente do céu, acode! Acho que eu fiquei cego!

sábado, 13 de novembro de 2010

Pega essa, Nenê...


No começo de sua vitoriosa história, o ASCA, clube de veteranos de Campos Altos, fez uma série de jogos contra os velhinhos de Ibiá, um time comandado pelo ex-prefeito ibiaense Dr. Ivo Mendes (pai).
Os jogos, pela constância, embora amistosos, foram criando uma certa rivalidade, o que não impedia os churrascos e a cervejada após as pelejas.
Numa dessas, o jogo corria duro no campo da Nestlé, com faltas mais fortes e divididas ríspidas. Não havia saído gols e a partida se encaminhava para o final com um zero a zero no placar.
Eis que o juiz, ibiaense da gema, resolver dar uma mão para o time da casa, marcando um pênalti escandalosamente inexistente aos 45 minutos do segundo tempo. O pessoal de Campos Altos se revoltou. Cercou o árbitro que, irredutível, ainda aproveitou a oportunidade para esbanjar autoridade distribuindo uma penca de cartões amarelos. Alguns empurrões foram registrados e os ânimos começaram a ficar mais exaltados do que o normal.
O Dr. Ivo, sempre educado e ponderado, chamou o Guenê a um canto e propôs:
- Ô Guenê, acalme seus jogadores. Não vamos deixar estragarem a festa. Eu bato o pênalti fraquinho, no meio do gol, o goleiro pega, o jogo fica no zero a zero e acaba tudo bem!
O Guenê gostou da ideia e conseguiu colocar ordem na casa.
Dr. Ivo ajeitou a bola na marca e se preparou para cumprir o combinado.
Acontece que se esqueceram de avisar ao Nenê Ludgero, goleiro de Campos Altos, que envergava sua indefectível camisa preta do Botafogo. A penalidade foi cobrada, o Nenê deu um salto mirabolante para o canto e a bola custou a passar da linha, bem no meio do gol.
A confusão durou o churrasco inteiro e, até hoje, essa é considerada a mais injusta das derrotas da ASCA.
O Dr. Ivo e o Guenê se olharam com a cara mais lerda do mundo e foram brindar uma gelada, consolidando uma amizade de muitos anos.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Conversa de Boteco

Paulo Pelado, ainda criança, perambulando pelas ruas de KZ, deparou com o trio entre umas e outras no bar do Nicolino. Sentados à mesa, de frente para a sinuca, ignoravam a partida disputada entre o Zé Pereira e o Zé Maria do Antônio Izidério (dois craques!).
João da Mariquinha, Rubens do Juca Basílio e Doca eram notórios na cidade pelo palavreado empolado e o bom humor com que avacalhavam a gramática.
O boteco podia estar cheio mas a maioria ficava ligada nas pérolas que, a qualquer momento, poderiam soltar.
E o Paulo não perdia oportunidade...
Nessa tarde, após um longo silêncio para meditação e para deixar descer a última dose, o Rubens raspou a garganta e propôs com solenidade ao João:
- A mim, não me importa que tu sofras.
Ao que o outro respondeu de estalo:
- Tais como eu, não resta dúvidas!
O Doca procurou mas não achou trecho mais sinuoso para rebater. Olhou para um e para outro e se contentou:
- Tô n’água!

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

URUBUPENGÓ









Ouvi a história da boca de quem chegou a ver ou, pelo menos, participou daquela reunião de todo sábado à tarde, na esquina da praça, bem em frente ao botequim de madeira que ficava ali à margem dos trilhos.
Junho, frio cortando, mesmo naquela hora em que o sol fica boiando como um lustre a colorir de vermelho a poeira do lugar. Waldemar descia animado. Blusa de lã, assim, abotoada até em cima.
Faltava tempo para as duas da tarde, hora marcada de o bicho passar. Mas o bate-papo de antes, a parada na esquina e o viajar tranqüilo do vai e volta de todo mundo também faziam parte do ritual.
Quem já estivera ali e apreciou o voar manso da ave, não deixou de fazer convidar quem ainda não havia testemunhado o acontecimento. Ficavam assim, em estado de quase hipnose, desde quando surgia lá longe, pros lados da Capelinha, um ponto minúsculo no céu branco da tarde de inverno e vinha crescendo num planar macio e preguiçoso.
Tratava-se de um urubu. Urubu de uma elegância de voo capaz de provocar exclamações das mais espetaculares. Convém dizer que gente que chegou a ver o tal urubu jura que essa elegância era coisa do exagero dos mais exaltados ou mesmo gozação daqueles que, por falta de paciência de esperar, saíam rápido, a caçoar dos que mantinham o costume de acompanhar a passagem do rapino.
Foi Tininho quem o viu primeiro. Tomando umazinha no “boteco de tábua”, sentado na varandinha estreita de frente para a estação, olhou meio que distraído para o céu, quando deparou com a ave descendo por sobre os trilhos por onde a Rede Mineira de Viação embalava seus passageiros de Mistos e Mineirões. O urubu descia num escorregar maneiro; cresceu devagar, sobrevoou o corredor entre o boteco e o Bar do Oswaldo e sumiu do outro lado ainda sobre a linha férrea, até passar o trecho que serpenteia as imediações do túnel.
Não por costume, mas por coincidência, Tininho foi de ser visto no mesmo lugar, no outro sábado, tomando uma outra coisa. Sabe-se que ainda estava na primeira ou antes dela, quando olhou distraído novamente para aquele lado de lá. O dono do bar notou seu sobressalto.
- Sentindo alguma coisa, Tino? – Não. Não sentia nada. Só estava meio esquisito no sentir, por parecer estar vivendo um momento muito igual ao daquela outra semana, na mesma hora. Não há de ver que o urubu apareceu de novo lá no alto, descreveu a mesma trajetória e desapareceu para os lados do Tigre? Mas não falou, não comentou, não era nada assim de assustar, só porque viu, do mesmo lugar, a imagem desse urubu descendo linha abaixo. Mesmo porque urubu é tudo igual! Ainda que tivesse uma sensação de que o bicho fosse o mesmo do outro dia, resolveu esquecer e esqueceu. Tanto esqueceu que não apareceu no outro sábado, apesar da comichão que lhe criou por dentro a vontade de conferir. Juntou tralha e saiu sozinho a buscar traíra nos açudes proibidos das fazendas por perto.
Mas Alaor, ao levantar os olhos para o mesmo lugar, no outro sábado, só uns minutinhos de diferença das outras vezes, saiu de dentro do balcão e acompanhou, meio sem acreditar, o urubu descrever o mesmo voo, como que na banguela. Tininho não achou vez de voltar ao boteco. Alaor sentiu falta de comentar a coisa, mesmo supondo que ali pra baixo pudesse ter morrido um boi ou coisa parecida, e o danado estava que fazia a festa numa carniceira qualquer. O que lhe intrigava era a regularidade, em dia e horário. Falou com outros fregueses que o olharam num desmentido humilhante. Mas bastou chegar outro sábado e lá foram eles e mais outros. Chegaram, ouviram do Alaor a história e, na hora exata, sem diferença na cadência do descer, lá veio o urubu na sua ritmada batida de asas até o meio da praça, para depois do voo sossegado, largado, desaparecer outra vez.
E assim, sem entender, passaram todos a contemplar semanalmente, durante anos, o espetáculo do urubu. A mesma cena, como num filme repetido no cinema do Dozinho.
Foi Waldemar, quando, num final de semana, juntou-se aos outros, quem soube esclarecer a assiduidade. O tal urubu era proveniente de São Gotardo. De tempos em tempos, mudava sua rota de acordo com os ventos e as térmicas. Agora, já centenário, parecia, definitivamente, ter escolhido sobrevoar Campos Altos pela linha férrea. Até a praça, embalava a descida com umas batidas já cansadas de asas e logo se fazia soltar no aberto do vale, sempre abaixo, até chegar com tempo à charqueada de Campo Belo, no Sul de Minas.
Waldemar soube da existência da ave ainda criança. Veio encontrar a rota quando o pássaro já voava sem a elegância única de que ouvira falar. Da última vez em que apareceu lá longe como uma pinta no céu muito branco, somente as barbatanas - “varetinhas” – tentavam se animar num zip-zip-zip que dava dó de olhar.
Soltou-se balançando muito e devia ser que qualquer dia não conseguiria subir de volta. Desapareceu lá embaixo.
O dia claro e frio causou uma sensação no pessoal do boteco, que pareceu fazer com que cada um abraçasse o volume da falta que fazia o urubu. Desde três semanas atrás, desde o dia em que não apareceu nunca mais.


Texto publicado no livro "Cantos e Recantos - 50 anos de História", comemorativo ao cinquentenário de Campos Altos, em 1994.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Dente teimoso...



O doutor Anyr João Mendes mudou-se para Campos Altos em 1950. Cirurgião dentista, aqui morou durante dez anos e nesse período colecionou um repertório de histórias que são o mais fiel retrato do período mais próspero vivido pela terrinha. Foi músico da Lira Santo Antônio, presidente do Vila Nova F.C., editor do jornal Ouro Verde, vice prefeito de José Bueno de Paula, (tendo, na modalidade das eleições de então, mais votos que o próprio prefeito eleito) e formou um sólido círculo de amizades que perdura até hoje.
A maioria das histórias que escrevo aqui me foram contadas por ele. De meu tio por afinidade, a quem devo, dentre outras coisas, minha paixão pelo Cruzeiro Esporte Clube, tomei a liberdade de adaptá-las para os textos com prejuízo enorme de sua verve incomparável.
Pois o dr. Anyr, em uma de suas vindas a Campos Altos, já na década de 80, tomava uma cerveja na cozinha do Rubens Ribeiro, trinta e tantos anos após mudar-se para Belo Horizonte, quando entrou o Sr. Tatão, sogro do dono da casa, que sentou-se, bebeu um cálice de cachaça e perguntou:
- Dr. Anyr, o senhor lembra de um dente meu que o senhor tratou naquele consultório ali perto do Pito Aceso...
O dentista orgulhoso da profissão e dos belos serviços prestados à clientela campos-altense abreviou:
- Mas é claro, Tatão. Você apareceu lá em casa de madrugada com a boca desse tamanho, com um lenço enrolado na cabeça, pedindo pelo amor de Deus que eu desse um jeito no tal dente. Que servição, heim?
E o Tatão, franco como sempre:
- Pois é doutor, o danado me dói até hoje!

terça-feira, 21 de setembro de 2010


O primeiro jornal local de Campos Altos foi o “Ouro Verde”. Jornal bem feito e bem escrito, como bem costumava ser as coisas naqueles anos dourados da década de 50.
O redator da sessão de esportes era José Maria de Rezende, que ainda anotava versos no periódico com o pseudônimo Jomarez. A assinatura dos poemas era bem conhecida da gente da terra, mas na região, pairava o mistério sobre a autoria das rimas.
Numa tarde de domingo, o campo se encheu para um clássico regional: Campos Altos e Córrego Danta mediriam forças na terra batida. E expectativa para o jogo era grande devido à já tradicional rivalidade entre os vizinhos.
O jogo foi duro e o que, na opinião dos redatores, seria uma grande zebra, acabou acontecendo. Córrego Danta deu um passeio e venceu com folga a peleja.
José Maria não se conformou. Espinafrou Campos Altos na edição seguinte do Ouro Verde e não poupou nem o Fernando, goleiraço, seu irmão. E afirmou e reafirmou que sua revolta não era tanto pela derrota em si, mas pela maneira como foi sofrida e, principalmente, por ter sido contra uma equipe sem predicados futebolísticos que valesse tal humilhação. Para ele, Córrego Danta não era nem jamais seria adversário a altura dos campos-altenses.
O jornal chegou a Córrego Danta e o povo se zangou. Juraram o Zé Maria e disseram que no jogo da volta não haveria perdão.
Passadas algumas semanas, a delegação de Campos Altos desceu a serra em caravana para a revanche. Ao chegar à cidade vizinha, era notável o clima que antecedia a partida. Nos bares lotados não se falava em outra coisa que não a contenda. E nos arroubos das entre - pingas com pelotas de carne, o brado geral de “quero ver o que vai falar aquele sujeito do jornal”.
Num Studbaker azul, viajava a comitiva representante da imprensa e a recepção foi respeitosa. O editor de esportes não se sentira ameaçado e a inconfessável temeridade já havia passado.
O jogo foi duro como o outro, mas Campos Altos deu o troco e acabou vencendo.
Mas o resultado deixou alguns torcedores exaltados, que resolveram protestar com o pessoal do Ouro Verde.
O Zé Maria, sentindo o clima, e avesso que era a rompantes violentos, aboletou-se no porta-malas do Studbaker. Um campos-altense sacana, no entanto, dedurou o Zé. Tomaram a chave do carro, abriram a mala e o encontraram lá dentro.
- Agora quero ver você falar o que falou no jornal. Não é você o tal de Zé Maria Resende?
O Zé não se deu por rogado:
- Quê isso, meu amigo. To aqui dormindo sossegado. Nem sei quem é Zé Maria. Meu nome é Jomarez e eu só escrevo poesia.
A tirada desarmou a turba que acabou retirando o Zé Maria do carro sem maiores arrancos e o convidaram pra uma rodada cerveja no bar da praça de Córrego Danta.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010


A Associação Esportiva Camposaltense, em seus áureos tempos, jogava em Patos de
Minas, no Estádio Valdomiro Pereira contra o Mamoré. O jogo corria e a colorada vencia por um a zero, gol de Zé Firmo. Com a pressão do time da casa, Guenê, que havia recebido uma falta no meio de campo, faz uma cenazinha para esfriar o jogo. Como o massagista não entrava, olhou pro banco e chamou:
- Ô Duda, cadê o atendimento?
O mestre de bateria, sambista da gema e pintor de primeira, que fazia as vezes de massagista, apontou o caixotinho pintado de branco com um M pintado em vermelho e confessou:
- Pra quê? Num tem nada aqui dentro mesmo.