Ouvi a história da boca de quem chegou a ver ou, pelo menos, participou daquela reunião de todo sábado à tarde, na esquina da praça, bem em frente ao botequim de madeira que ficava ali à margem dos trilhos.
Junho, frio cortando, mesmo naquela hora em que o sol fica boiando como um lustre a colorir de vermelho a poeira do lugar. Waldemar descia animado. Blusa de lã, assim, abotoada até em cima.
Faltava tempo para as duas da tarde, hora marcada de o bicho passar. Mas o bate-papo de antes, a parada na esquina e o viajar tranqüilo do vai e volta de todo mundo também faziam parte do ritual.
Quem já estivera ali e apreciou o voar manso da ave, não deixou de fazer convidar quem ainda não havia testemunhado o acontecimento. Ficavam assim, em estado de quase hipnose, desde quando surgia lá longe, pros lados da Capelinha, um ponto minúsculo no céu branco da tarde de inverno e vinha crescendo num planar macio e preguiçoso.
Tratava-se de um urubu. Urubu de uma elegância de voo capaz de provocar exclamações das mais espetaculares. Convém dizer que gente que chegou a ver o tal urubu jura que essa elegância era coisa do exagero dos mais exaltados ou mesmo gozação daqueles que, por falta de paciência de esperar, saíam rápido, a caçoar dos que mantinham o costume de acompanhar a passagem do rapino.
Foi Tininho quem o viu primeiro. Tomando umazinha no “boteco de tábua”, sentado na varandinha estreita de frente para a estação, olhou meio que distraído para o céu, quando deparou com a ave descendo por sobre os trilhos por onde a Rede Mineira de Viação embalava seus passageiros de Mistos e Mineirões. O urubu descia num escorregar maneiro; cresceu devagar, sobrevoou o corredor entre o boteco e o Bar do Oswaldo e sumiu do outro lado ainda sobre a linha férrea, até passar o trecho que serpenteia as imediações do túnel.
Não por costume, mas por coincidência, Tininho foi de ser visto no mesmo lugar, no outro sábado, tomando uma outra coisa. Sabe-se que ainda estava na primeira ou antes dela, quando olhou distraído novamente para aquele lado de lá. O dono do bar notou seu sobressalto.
- Sentindo alguma coisa, Tino? – Não. Não sentia nada. Só estava meio esquisito no sentir, por parecer estar vivendo um momento muito igual ao daquela outra semana, na mesma hora. Não há de ver que o urubu apareceu de novo lá no alto, descreveu a mesma trajetória e desapareceu para os lados do Tigre? Mas não falou, não comentou, não era nada assim de assustar, só porque viu, do mesmo lugar, a imagem desse urubu descendo linha abaixo. Mesmo porque urubu é tudo igual! Ainda que tivesse uma sensação de que o bicho fosse o mesmo do outro dia, resolveu esquecer e esqueceu. Tanto esqueceu que não apareceu no outro sábado, apesar da comichão que lhe criou por dentro a vontade de conferir. Juntou tralha e saiu sozinho a buscar traíra nos açudes proibidos das fazendas por perto.
Mas Alaor, ao levantar os olhos para o mesmo lugar, no outro sábado, só uns minutinhos de diferença das outras vezes, saiu de dentro do balcão e acompanhou, meio sem acreditar, o urubu descrever o mesmo voo, como que na banguela. Tininho não achou vez de voltar ao boteco. Alaor sentiu falta de comentar a coisa, mesmo supondo que ali pra baixo pudesse ter morrido um boi ou coisa parecida, e o danado estava que fazia a festa numa carniceira qualquer. O que lhe intrigava era a regularidade, em dia e horário. Falou com outros fregueses que o olharam num desmentido humilhante. Mas bastou chegar outro sábado e lá foram eles e mais outros. Chegaram, ouviram do Alaor a história e, na hora exata, sem diferença na cadência do descer, lá veio o urubu na sua ritmada batida de asas até o meio da praça, para depois do voo sossegado, largado, desaparecer outra vez.
E assim, sem entender, passaram todos a contemplar semanalmente, durante anos, o espetáculo do urubu. A mesma cena, como num filme repetido no cinema do Dozinho.
Foi Waldemar, quando, num final de semana, juntou-se aos outros, quem soube esclarecer a assiduidade. O tal urubu era proveniente de São Gotardo. De tempos em tempos, mudava sua rota de acordo com os ventos e as térmicas. Agora, já centenário, parecia, definitivamente, ter escolhido sobrevoar Campos Altos pela linha férrea. Até a praça, embalava a descida com umas batidas já cansadas de asas e logo se fazia soltar no aberto do vale, sempre abaixo, até chegar com tempo à charqueada de Campo Belo, no Sul de Minas.
Waldemar soube da existência da ave ainda criança. Veio encontrar a rota quando o pássaro já voava sem a elegância única de que ouvira falar. Da última vez em que apareceu lá longe como uma pinta no céu muito branco, somente as barbatanas - “varetinhas” – tentavam se animar num zip-zip-zip que dava dó de olhar.
Soltou-se balançando muito e devia ser que qualquer dia não conseguiria subir de volta. Desapareceu lá embaixo.
O dia claro e frio causou uma sensação no pessoal do boteco, que pareceu fazer com que cada um abraçasse o volume da falta que fazia o urubu. Desde três semanas atrás, desde o dia em que não apareceu nunca mais.
Texto publicado no livro "Cantos e Recantos - 50 anos de História", comemorativo ao cinquentenário de Campos Altos, em 1994.